quarta-feira, 23 de maio de 2012

Traição aprendida no berço real

  • Assim como sua mãe, Carlota Joaquina, D. Pedro I tinha um séquito de amores extraoficiais

    Mary Del Priore

    No céu do século XIX brilhou uma estrela: a do adultério. A história de amantes, que antes estava relacionada à dominação entre senhor e escravas, agora dava lugar a uma relação venal. Às vezes, esses casos eram até apimentados com sentimentos. E o exemplo vinha de cima.
    O período começou com a chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808. Entre os membros da família real, a princesa Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon y Bourbon já vinha malfalada por viver na Quinta do Ramalhão, palácio localizado em Sintra, distante da residência do marido, D. João, que vivia em Lisboa. À boca pequena, havia rumores de um envolvimento de Carlota com o comandante das tropas navais britânicas, Sydney Smith. A ele, ela ofereceu de presente uma espada e um anel de brilhantes. Temperamental e senhora de um projeto político pessoal – queria ser regente da Espanha –, a princesa teve, sim, amores. Todos encobertos pela capa da etiqueta e por cartas trocadas com o marido, nas quais ele era chamado de “meu amor”.
    No Brasil, a nora Leopoldina (1797-1826), recém-chegada da Áustria – uma das mais sofisticadas Cortes europeias –, não deixou de escrever aos familiares, chocada com o comportamento de Carlota Joaquina: “Sua conduta é vergonhosa, e desgraçadamente já se percebem as consequências tristes nas suas filhas mais novas, que têm uma educação péssima e sabem aos dez anos tanto como as outras que são casadas”.
    Os casos amorosos de Carlota eram conhecidos, e o mais rumoroso deles resultou no assassinato a facadas, a mando da própria Carlota, de uma rival, a mulher de um funcionário do Banco do Brasil. Enquanto isso, comentava-se sobre a solidão de D. João, atenuada graças aos cuidados de seu valete de quarto.
    Já o filho D. Pedro não escondeu de ninguém seus casos. Tampouco se importava em ser discreto com a própria esposa, a princesa Leopoldina, com quem se casou em 1817. Segundo biógrafos, “seu apetite sexual” era insaciável. Para ele, não importava a condição social: mucamas, estrangeiras, criadas ou damas da Corte. Nessa época, ser libertino não significava apenas seduzir todas. Mas, sobretudo, não se deixar seduzir. Nenhuma se negava a D. Pedro I, por ser rei e por ser fogoso.
    O cônsul espanhol Delavat, no Rio, em 1826, acusava-o de ser “variável em suas conexões com o belo sexo”. E não hesitava em manter relações com várias mulheres de uma mesma família, como fez com a dançarina Noémi Thierry e sua irmã. O mesmo Delavat escreveu que D. Pedro tinha “um objeto distinto para cada semana, nenhuma conseguia fixar sua inclinação”. Nenhuma até ir a São Paulo, em setembro de 1822, quando proclamou a Independência. Lá encontrou Domitila de Castro Canto e Mello, de 25 anos, um a mais que ele. Belíssima? Não exatamente. Certo pendor para a gordura, três partos, cicatrizes, um rosto fino e comprido, aceso pelo olhar moreno. Domitila era mãe de três filhos e acusada de adultério. Ela levara uma facada do marido certa manhã em que voltava, às escondidas, para casa. O fato manchava o nome da família.


    [Domitila de Castro Canto e Mello, a marquesa de Santos]
    Uma aventura romanesca teve início no dia 29 ou 30 de agosto de 1822. Este affair extravasou a alcova e se refletiu mais tarde na vida política e familiar do príncipe, dentro e fora do país.  Logo após tornar-se imperador, D. Pedro deixa de lado a discrição, transformando Titília, como a chamava, numa “teúda e manteúda” que é apresentada à Corte e instalada em uma casa, atual Museu do Primeiro Reinado, ao lado do Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.
    Em 1824, veio ao mundo Isabel Maria de Alcântara Brasileira, a “Belinha”, primeira filha do casal de amantes. Em 12 de outubro de 1825, D. Pedro, já imperador, contemplou Domitila com o título de viscondessa, no mesmo ano em que nascia mais um filho da concubina, Pedro de Alcântara Brasileiro. Em 1826, no dia do imperial aniversário, Domitila se tornou a marquesa de Santos. Aconteceu então um fato documentado: tendo os diretores do Teatro da Constituição proibido a entrada da marquesa, alegando que não era digna da boa sociedade, baixou-se ordem para que fossem fechadas as portas e presos aqueles diretores. O imperador era um amante zeloso...
    Amante, sim, e quanta paixão! Suas cartas são recheadas de suspiros e voluptuosidade: “Meu amor, meu tudo”, “meu benzinho... vou aos seus pés”, “aceite o coração deste que é seu verdadeiro, fiel, constante, desvelado e agradecido amigo e amante”. E mais incisivo: “Forte gosto foi o de ontem à noite que tivemos. Ainda me parece que estou na obra. Que prazer!! Que consolação!!!”. E terminava “com votos de amor do coração deste seu amante constante e verdadeiro que se derrete de gosto quando... com mecê”. Ou mandava “um beijo para a minha coisa”, ou ainda “abraços e beijos e fo...”.  E depois, mortificado de ciúmes e suspeitas, perguntava: “será possível que estimes mais a alguém do que a mim?”. E assinava-se “seu Imperador”, “seu fogo foguinho”, “o Demonão”, quando não acrescia eroticamente, como se vê em carta no Museu Imperial, o desenho do real pênis ejaculando em louvor da amante. Tudo cheirando – como disse um biógrafo – a lençóis molhados e em desalinho.
    O amor adúltero se desenvolvia na frente de todos e dividia a Corte. Os irmãos Andrada, em particular José Bonifácio, consideravam a atitude do jovem imperador comprometedora para a imagem do novo Império no exterior. Ainda como viscondessa, o imperador chegou ao cúmulo de elevar Domitila a dama camarista de sua esposa, D. Leopoldina. A amante acompanhou o casal numa viagem de dois meses à Bahia. O secretário da imperatriz escreveu, em fevereiro de 1826, ao chanceler austríaco Klemens Wenzel von Metternich para reprovar a “fatal publicidade da ligação” com a marquesa de Santos, debitando-a à “resignação e introspecção” da princesa austríaca.
    A possibilidade de D. Pedro I se casar com a “Pompadour tropical” horrorizou a aristocracia europeia. A morte de D. Leopoldina no final de 1826, aos 29 anos, obrigou D. Pedro a tomar certos cuidados, pois não faltaram manifestações acusando Domitila de ter envenenado a imperatriz. A própria Leopoldina se queixara, em carta ao pai, de que o marido a maltratava “na presença daquela que é causa de todas as minhas desgraças”. Os moradores reagiam à presença da concubina disparando insultos, ameaças e até  mesmo uma tentativa de linchamento.
    Multiplicavam-se as murmurações contra a Domitila, que reunia em São Cristóvão uma família bastante característica destes tempos: filhos legítimos e ilegítimos, seus sete irmãos, sobrinhos e cunhadas, o tio materno Manuel Alves, a tia-avó dona Flávia e as primas Santana Lopes. O barão de Maréchall anotava em relatório enviado à Áustria: “A família aflui de todos os cantos; uma avó, uma irmã e uns primos acabam de chegar”.
    Em 1827, já gozando de todas as prerrogativas de marquesa, Domitila recebe ainda a condecoração da Real Ordem de Santa Isabel de Portugal, além de conseguir títulos de nobreza para o restante de sua família. Tanto agrado aguçou desafetos, dando munição aos que se batiam pelo fim das honrarias. Perigo havia, mas quando se alastraram notícias da busca de uma noiva para o imperador viúvo, as cartas de amor que Domitila recebia mudaram de tom. Agora, D. Pedro falava em “gratidão e afeto particular”, chamando-a de “minha amiga”. Grávida do imperador pela quarta vez – a filha Maria Isabel de Alcântara Brasileira nasceu no dia 13 de agosto –, ela percebeu suas intenções quando ele pediu que se distanciasse da Corte, com a promessa de uma pensão generosa.
    A concubina foi afastada antes da chegada da nova noiva. Assinado em 1829, o contrato de casamento com a princesa alemã Amélia de Leutchemberg, segunda esposa de D. Pedro, pôs fim ao caso.

    Mary Del Priore é professora da Universidade Salgado de Oliveira e autora de História do Amor no Brasil (Editora Contexto, 2002).

    Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/

    Saiba Mais - Bibliografia
    ASSUNÇÃO, Paulo de. Ritmos da vida – momentos efusivos da família real portuguesa nos Trópicos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.
    AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
    LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
    PRESAS, José. Memórias secretas da princesa do Brasil. Rio de Janeiro: Phoebus, 2008.

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