A vitória do socialista François Hollande nas eleições presidenciais,
realizadas no domingo passado (6), admite reflexões importantes à
direita e à esquerda do cenário político francês e europeu. Com uma
plataforma política vaga e promessas sabidamente irrealizáveis em curto
prazo, certamente não foi o ideário político, o plano de governo ou o
projeto de Estado socialista o vitorioso nessa disputa. O discurso
eleito foi o da mudança: de política econômica interna e externa,
alteração na relação estabelecida com os imigrantes legais e ilegais, e,
sobretudo, a transformação gradativa da imagem que os franceses
cultivam de si mesmos.
A França foi um dos países mais afetados pela crise financeira que
eclodiu no ano de 2008 e que colocou potências europeias em ambígua
situação de ajuda mútua e competição interna na tentativa de salvar suas
economias. As taxas de desemprego crescentes e a política de
austeridade liderada pela agora orgulhosa Alemanha tem provocado a união
de diferentes setores sociais. Estudantes, trabalhadores e classes
médias aparecem juntos em constantes reivindicações por melhorias nas
condições básicas de emprego, salários e juros.
As desigualdades sociais e as dificuldades emergenciais de uma economia
em crise são problemas comuns às tensões e adaptações da combinação
entre democracia liberal e justiça social. Nesse contexto, não é
surpreendente que a questão econômica tenha se constituído em elemento
mobilizador fundamental nas políticas nacionais. Contudo, no atual
momento francês, os descontentamentos dos diversos setores sociais
parecem conectados a outros elementos mais estruturais, ligados à
complexidade da reconstrução de uma identidade coletiva.
Insatisfação social
O rebaixamento da nota econômica internacional da França, segundo
agência legitimada para esta tarefa de classificação, em janeiro deste
ano, decretou o início de um impressionante decréscimo de popularidade
do então presidente Nicolas Sakozy. As constantes revoltas estudantis
aliadas aos protestos dos imigrantes e os conflitos sociais daí
decorrentes, frequentes há pelo menos 5 anos, não se mostraram tão
impactantes em curto prazo quanto a “humilhação” internacional. Nesse
sentido, vale lembrar como o orgulho nacional tornou-se ao longo da
história europeia um detonador de transformações políticas e sociais à
direita e à esquerda.
A
Espanha invadida por Napoleão no início do século XIX considerou
estratégia política mais acertada colaborar com o invasor a ver anulada
qualquer possibilidade de exercício de poder e de resquício de
soberania. O nazismo de Hitler na Alemanha teve na pretensa reconstrução
do Reich e do orgulho nacional, ferido pela derrota e pelas sanções
sofridas após a Primeira Guerra Mundial, um discurso importante para a
coesão social e para sua ascensão ao poder. Aliado à reconstrução
econômica e étnica do alemão, o orgulho destrutivo completou uma
alternativa então convincente diante do fracasso do modelo ocidental
capitalista e democrático. E ainda, no colaboracionismo francês de Vichy
podem ser encontradas raízes de uma necessidade de manter-se no poder a
um custo apenas descoberto pelas gerações seguintes.
Reformulação da memória francesa
Nestas eleições, enquanto o presidente derrotado assumiu explicitamente
uma plataforma conservadora de restrição política a entrada de
imigrantes, Hollande anunciou a intenção de regularizar a entrada e a
sobrevivência dos estrangeiros no país. Ao que tudo indica, trata-se de
uma questão mais ampla e que inclui a reformulação da memória e da
história oficial da nação francesa.
A violência e a discriminação alegada em diversas cidades tem chamado a
atenção para a presença de uma comunidade bastante diversificada de
imigrantes argelinos, marroquinos, tunisianos e da África Negra que
reivindicam não apenas sua diferença e a importância de suas culturas,
por vezes, já enraizadas no cotidiano da população, mas de sua igualdade
de direitos, condições de trabalho e de vida. Trata-se de uma das
bandeiras mais agitadas no conhecido maio de 1968 francês, talvez
vencida pela reação conservadora e não incorporada à prática social. A
miscigenação de Gilberto Freyre nos trópicos parece agora mais bem-vinda
no berço da “civilização” do que a homogeneidade do mito nacional
afirmado diante dos conflitos externos no contexto europeu da formação
dos Estados Nacionais.
Entendida como um corpo político e um agente coletivo, a nação francesa
se vê atualmente como um conjunto heterogêneo, composto por grupos,
classes e etnias diferentes e em conflito. Por outro lado, as narrativas
que conferiam legitimidade aos mitos e à história oficial francesa
enfrentam uma necessidade revisionista em situação de impasse. O desafio
de Hollande será construir e viabilizar uma agenda política e econômica
coletiva que combine a reconstrução dos vínculos sociais e nacionais ao
desenvolvimento produtivo, através de uma única história cuja narrativa
convença a todos. Ocorre, contudo, que a nação inclui também os 48% de
eleitores que votaram em Sarkozy e, certamente, complicarão essa luta
por convencimento.
A população entoou a simbólica Marselhesa e marchou pela cidade rumo à
praça da Bastilha, onde ao menos 100 mil pessoas se concentraram para
receber o novo presidente. Os símbolos de uma sociedade revolucionária
pesam mesmo sobre aqueles cujos laços de sangue não podem ser evocados
nessa afirmação identitária. São, contudo, personagens da reconstrução
cotidiana das representações, narrativas e mitos que fundam uma nova
nacionalidade com a velha disposição para a transformação.
Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/quantos-significados-possui-uma-eleicao
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